(Re) Pensando o Direito

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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI

André Duarte

Poucos pensadores contemporâneos terão exercido um impacto mais fortemente

liberador e criativo sobre o conjunto das ciências humanas do que Michel Foucault. A

amplitude do legado de sua reflexão evidencia o caráter generoso de suas idéias, que se

disseminaram e renovaram campos distintos da investigação das ciências humanas. No

entanto, seu legado teórico não se esgota apenas na renovação de áreas já estabelecidas de

conhecimento, mas se deixa comprovar, e talvez de maneira ainda mais evidente, na

capacidade de formular conceitos que instigam a formação de novos problemas e campos

de investigação. Isto é exatamente o que está ocorrendo agora, um tanto tardiamente, com o

conceito foucaultiano de biopolítica, que se tornou uma importante ferramenta conceitual

para compreendermos e diagnosticarmos as crises políticas do presente. Como veremos ao

final desse texto, o próprio Foucault nos deixou reservada uma surpresa analítica inusitada,

expressa na articulação inovadora entre biopolítica, biogenética e governo econômico de

populações, temas de seu último curso a respeito do assunto, O nascimento da biopolítica,

Apresentado ao grande público em 1976, no último capítulo de História da

Sexualidade I, A vontade de saber, e desenvolvido em um curso proferido no Collège de

France do mesmo ano, publicado postumamente como Em defesa da sociedade, o conceito

de biopolítica tardou quase duas décadas até ser devidamente compreendido, absorvido e

apropriado por outros autores.2 Neste texto, gostaria de estabelecer uma brevíssima

reconstituição do caminho teórico pelo qual Foucault chegou à formulação original deste

conceito para, em seguida, apontar, nas páginas finais deste ensaio, como o conceito da

biopolítica foi retomado e redefinido no pensamento de um dos principais teóricos

contemporâneos da política, Giorgio Agamben. 3Dois motivos relacionados entre si podem explicar porque a importância do

conceito de biopolítica para a compreensão dos dilemas políticos do presente tardou quase

quinze anos para ser reconhecida. Em primeiro lugar, para reconhecê-lo era fundamental

ultrapassar a rigidez dicotômica da distinção ideológica tradicional entre esquerda e direita,

aspecto que já se encontrava presente na análise foucaultiana do caráter biopolítico não

apenas do nazismo e do stalinismo, mas também das democracias liberais e de mercado.

Em segundo lugar, penso que o fenômeno da biopolítica só poderia ser entendido enquanto

forma globalmente disseminada de exercício cotidiano de um poder estatal que investe na

multiplicação da vida por meio da aniquilação da própria vida, a partir do advento recente

da política transnacional globalizada e ‘liquefeita’, segundo a terminologia de Bauman.

Nesse sentido, creio que a reflexão de Deleuze sobre as transformações sociais da última

década, as quais iniciaram o processo de substituição do modelo disciplinar de sociedade

pelo modelo de “sociedade de controle”, articulada em redes de visibilidade absoluta e

comunicação virtual imediata, constitui o paradigma a partir do qual Toni Negri e Michael

Hardt puderam formular seu conceito de “Império”, no centro do qual se encontra,

justamente, uma apropriação do conceito foucaultiano de biopolítica, redefinido agora em

termos da biopotência da Multidão. 4

Os conceitos foucaultianos de biopolítica e biopoder surgiram como o ponto

terminal de sua genealogia dos micro-poderes disciplinares, iniciada nos anos 70. Ao

mesmo tempo em que eram depositários de um conjunto de análises e conceituações

previamente estabelecidos, tais conceitos também inauguraram deslocamentos em relação

àquilo que o autor havia pensado anteriormente, em obras como A Verdade e as Formas

Jurídicas e Vigiar e Punir. 5 Como se sabe, o ponto de partida da genealogia foucaultianafoi a descoberta dos micro-poderes disciplinares que visavam a administração do corpo

individual, surgidos durante o século 17 em consonância com a gradativa formação de todo

um conjunto de instituições sociais como o exército, a escola, o hospital, a fábrica etc.

Foucault chegaria aos conceitos de biopoder e biopolítica ao vislumbrar o aparecimento, ao

longo do século 18 e, sobretudo, na virada para o século 19, de um poder disciplinador e

normalizador que já não se exercia sobre os corpos individualizados nem se encontrava

disseminado no tecido institucional da sociedade, mas se concentrava na figura do Estado e

se exercia a título de política estatal que pretendia administrar a vida e o corpo da

população.

desenvolvidas em Vigiar e Punir, definidas como uma “anátomo-política do corpo”, com o

que Foucault agora denominava, no volume I da História da Sexualidade, como a

“biopolítica das populações”. Se não há contradição entre poder disciplinar e biopoder, os

quais têm nos processos de normalização sua base comum, não se pode deixar de notar que

a introdução da biopolítica impôs uma mutação no curso das pesquisas genealógicas de

Foucault.

A partir do momento em que passou à análise dos dispositivos de produção da

sexualidade, Foucault percebeu que o sexo e, portanto, a própria vida, se tornaram alvos

privilegiados da atuação de um poder que já não tratava simplesmente de disciplinar e

regrar comportamentos individuais, mas que pretendia normalizar a própria conduta da

espécie ao regrar, manipular, incentivar e observar fenômenos que não se restringiam mais

ao homem no singular, como as taxas de natalidade e mortalidade, as condições sanitárias

das grandes cidades, o fluxo das infecções e contaminações, a duração e as condições da

vida etc. A partir do século 19 já não importava apenas disciplinar as condutas individuais,

mas, sobretudo, implantar um gerenciamento planificado da vida das populações. Assim, o

que se produzia por meio da atuação específica do biopoder não era mais apenas o

indivíduo dócil e útil, mas era a própria gestão da vida do corpo social. O sexo se tornou

então um foco privilegiado para o controle disciplinar do corpo e para a regulação dos

fenômenos da população, constituindo-se o que o autor denominou como dispositivo da

sexualidade. A sexualidade, tal como produzida por uma rede de saberes e poderes que

agem sobre o corpo individual e sobre o corpo social, tornou-se a chave para a análise e

para a produção da individualidade e da coletividade. A partir dessa mutação, as figuras do

Evidentemente, esta descoberta pressupunha combinar as análises Estado e do poder soberano, das quais Foucault se afastara anteriormente a fim de

compreender o modus operandi dos micro-poderes disciplinares, tornaram-se então

decisivas, pois constituíam a instância focal de gestão das políticas públicas relativas à vida

da população.

Foucault demonstra essa importante transformação que afetou a forma de atuação

do poder soberano no capítulo final da História da Sexualidade. Sua tese era a de que, a

partir da virada para o século 19, deu-se um importante deslocamento na forma de exercício

do poder soberano, que passou a se afirmar não mais como um poder de matar a vida, mas

sim como um “poder que gere a vida”. Agora, interessava ao poder estatal estabelecer

políticas públicas por meio das quais poder-se-ia sanear o corpo da população, depurando-o

de suas infecções internas. É justamente nesse ponto que a genialidade analítica de Foucault

se evidencia: ali onde nosso sentido comum nos levaria a louvar o caráter humanitário de

intervenções políticas que visam incentivar, proteger, estimular e administrar o regime e as

condições vitais da população, ali mesmo nosso autor descobrirá a contrapartida sangrenta

desta nova obsessão do poder pelo cuidado purificador da vida. Foucault compreendeu que,

a partir do momento em que a vida passou a se constituir como elemento político por

excelência, o qual tem de ser administrado, calculado, gerido, regrado e normalizado por

políticas estatais, o que se observa não é uma diminuição da violência. Pelo contrário, tal

cuidado da vida de uns traz consigo, de maneira necessária, a exigência contínua e

crescente da morte em massa de outros, pois é apenas no contraponto da violência

depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada

população. Não há, portanto, contradição entre o poder de gerência e incremento da vida e

o poder de matar aos milhões para garantir as melhores condições vitais possíveis: toda

biopolítica é também, intrinsecamente, uma tanatopolítica. Assim, a partir do momento em

que a tarefa do soberano foi a de “fazer viver”, isto é, a de estimular calculadamente o

crescimento da vida, as guerras se tornaram mais sangrentas e os genocídios se

multiplicaram, dentro e fora da nação:

As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da
existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da
necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da
sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras,
causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o círculo,
quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a destruição exaustiva, tanto mais as decisões que as iniciam e encerram se ordenaram em função da questão nua e crua da
sobrevivência. (...) Se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma
volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível
da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços da população. 6

Sob as condições impostas pelo exercício do biopoder, o incremento da vida da

população não se separa da produção contínua da morte, no interior e no exterior da

comunidade entendida como entidade biologicamente homogênea: “São mortos

legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros”.7 É

por isso que, ao longo do século 19, se opera uma transformação decisiva no próprio

racismo, que deixa de ser um mero ódio entre raças ou a expressão de preconceitos

religiosos, econômicos e sociais para se transformar em doutrina política estatal, em

instrumento de justificação e implementação da ação mortífera dos Estados, como já o

observara Hannah Arendt. A descoberta da importância política do racismo como forma

privilegiada de atuação estatal, fartamente empregada ao longo do surto imperialista

europeu do século 19 e radicalizada cotidianamente ao longo do século 20, encontrando no

nazismo e no stalinismo seu ápice, tem de ser compreendida em termos daquela mutação

operada na própria natureza do poder soberano. Num contexto biopolítico não há Estado

que não se valha de formas amplas e variadas de racismo como justificativa para exercer

seu direito de matar em nome da preservação, intensificação e purificação da vida. O

racismo justifica os mais diversos conservadorismos sociais na medida em que institui um

corte no todo biológico da espécie humana, estabelecendo a partilha entre “o que deve viver

e o que deve morrer”.8 Na medida em que os conflitos políticos do presente visam a

preservação e intensificação da vida do vencedor, conseqüentemente eles não expressam

mais a oposição antagônica entre dois partidos adversários segundo o binômio schmittiano

do amigo-inimigo, pois os inimigos deixam de ser opositores políticos para ser

considerados como entidades biológicas. Já não podem ser apenas derrotados, têm de ser

exterminados, pois constituem perigos internos à raça, à comunidade, à população: “A

morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do

anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura”. 9

A descoberta não apenas da biopolítica, mas também do paradoxal modus operandi

do biopoder, o qual, para produzir e incentivar de maneira calculada e administrada a vida

de uma dada população, tem de impor o genocídio aos corpos populacionais considerados

exógenos, é certamente uma das grandes teses que Foucault legou ao século XXI. Não se

tratava de descrever um fenômeno histórico do passado, mas de compreender o cerne

mesmo da vida política contemporânea, motivo que Foucault enuncia já de saída nas

primeiras páginas do capítulo final do primeiro volume da História da Sexualidade: “O

homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além

disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua

vida de ser vivo está em questão”. Em outras palavras, ao descrever a dinâmica de exercício

do biopoder, Foucault também enunciou um diagnóstico a respeito da política e seus

dilemas no presente. 10

Somente agora, com a recente publicação do curso de 1978-1970, intitulado O

nascimento da biopolítica, podemos vislumbrar a real importância deste conceito para

Foucault, assim como também sua potência de esclarecimento propriamente visionária.

Após ter analisado o modus operandi do biopoder em suas formas estatais mais evidentes,

no nazismo e no socialismo realmente existente, Foucault deu outra guinada em sua

pesquisa e começou a investigar e antecipar como se darão as novíssimas formas de

controle biopolítico, não mais sob o eixo dos exageros do poder soberano estatal, mas agora

segundo o eixo flexível das economias de mercado influenciadas pelo neo-liberalismo

econômico da chamada Escola de Chicago. Muito antes do florescimento da engenharia

genética, Foucault compreendeu que, sob o neo-liberalismo econômico do pós-guerra, o

homem havia sido compreendido e mesmo fixado em termos do homo oeconomicus, isto é,

como agente econômico que responde aos estímulos do mercado de trocas, mais do que

como personalidade jurídico-política autônoma. Neste curso, Foucault pensa o mercado

como a instância suprema de formação da verdade no mundo contemporâneo, para muito

além da velha ficção jusnaturalista, segundo a qual o certo e o errado, o permitido e nãopermitido, definem-se por meio da reconstituição da maquinaria jurídico-política que

culminou com a definição do poder soberano. Foucault interessa-se, então, pelas formas

flexíveis e sutis de controle e governo das populações e dos indivíduos, tal como elas se

exercem por meio das regras da economia do mercado mundializado, para além dos

domínios limitados da soberania política tradicional: “É preciso governar para o mercado,

em vez de governar por causa do mercado”.11

No centro de sua nova consideração sobre a biopolítica na via do neoliberalismo

econômico se encontrava a fusão entre o homo oeconomicus e a teoria do “capital

humano”. A fusão entre ambos diz respeito à concepção de que o homo oeconomicus não é

apenas um empreendedor qualquer no mercado de trocas, mas sim um empreendedor de si

mesmo, tomando-se a si mesmo como seu próprio produtor de rendimentos. Já no final da

década de 70, Foucault compreendera que havíamos nos transformado em agentes

econômicos que precisam valorizar e amplificar continuamente nossas capacidades e

habilidades profissionais a fim de nos tornarmos competitivos para o mercado de trabalho.

Ora, o que ele antecipa nessas análises é justamente o fato, hoje em vias de se tornar

realidade cotidiana, de que cada vez mais a biogenética será a via por meio da qual o homo

oeconomicus tratará de potencializar suas capacidades e habilidades, ao mesmo tempo em

que tentará controlar os fatores potenciais de risco – como doenças geneticamente

herdadas, por exemplo – que podem colocá-lo em situações desfavoráveis na competição

pelo sustento de sua vida. Foucault compreendera muito rapidamente que sob condições

neoliberais o mercado seria a instância a partir da qual se decidiria a manipulação do

genoma humano, tornando irrelevante toda e qualquer discussão ética:

... um dos interesses atuais da aplicação da genética às populações humanas é o de permitir
reconhecer os indivíduos de risco e o tipo de risco que os indivíduos correm ao longo de sua
existência. Vocês me dirão: quanto a isso não podemos fazer nada, nossos pais nos fizeram
assim. Por certo, mas quando se pode estabelecer quais são os indivíduos de risco, e quais
são os riscos de que uma união de risco produza um indivíduo que terá tal ou qual
característica quanto ao risco de que é portador, pode-se perfeitamente imaginar o seguinte:
é que os bons equipamentos genéticos – isto é, [aqueles] que poderão produzir indivíduos
de baixo risco ou cuja taxa de risco não será nociva para eles, para seus próximos ou para a
sociedade – esses bons equipamentos genéticos vão certamente se tornar algo raro, e na
medida em que serão algo raro podem perfeitamente [entrar], e é normal que entrem, no
interior dos circuitos ou dos cálculos econômicos, isto é, nas escolhas alternativas. Emtermos claros, isso vai significar que, dado meu equipamento genético, se quero ter um
descendente cujo equipamento genético seja pelo menos tão bom quanto o meu, ou, na
medida do possível, melhor, vou ter que encontrar alguém com quem me casar cujo
equipamento genético também seja bom. E vocês vêem claramente como o mecanismo de
produção dos indivíduos, a produção de filhos, pode reencontrar toda uma problemática
econômica e social a partir do problema da raridade de bons equipamentos genéticos. E se
vocês quiserem ter um filho cujo capital humano, entendido simplesmente em termos de
elementos inatos e de elementos hereditários, seja elevado, verão que, da parte de vocês,
será preciso todo um investimento, isto é, ter trabalhado o suficiente, ter renda suficiente,
ter um estatuto social que lhes permitirá assumir como cônjuge ou como co-produtor desse
futuro capital humano alguém cujo capital também será importante. Eu lhes digo isso de
forma alguma beirando a brincadeira; é simplesmente uma forma de pensar ou uma forma
de problemática que se encontra atualmente em estado de emulsão.12

É bastante evidente que Foucault não estava lançando prognósticos ao acaso, como

se estivesse brincando de ficção científica: o que ele vislumbrou foi a conexão possível, a

ponto de se tornar necessária, entre o homo oeconomicus do neo-liberalismo, a teoria do

capital humano e a biogenética, anunciando assim o momento em que genética e economia

se fundirão determinando as condições nas quais o processo de individuação se dará.

Foucault não nega o componente eugênico e racista implicado na fusão entre reprodução

humana e reprodução do capital, muito embora as análises do curso de 1978-79 revelem um

deslocamento importante em relação às análises de Em defesa da sociedade, nas quais se

considerava a biopolítica a partir da nova capacidade do poder soberano de agir de maneira

a incentivar a vida e aniquilar suas partes consideradas perigosas por meio de políticas

estatais. Para além dessa modalidade particular de exercício da biopolítica, o curso de

1978-79 centra a atenção na caracterização dos sutis processos de governamentalização do

indivíduo que, por sua livre e espontânea decisão, assume submeter-se e subjugar-se ao

reger sua conduta segundo os princípios flexíveis do homo oeconomicus e da teoria do

capital humano acoplada à biogenética, tornando-se, assim, a presa voluntária de processos

de individuação controlada flexivelmente pelo mercado. Em poucas palavras, Foucault

descobriu nessas lições a gênese do indivíduo que estamos prestes a nos tornar, ou seja, o

indivíduo plenamente governável e manipulável por meio das leis econômicas de mercado

associadas às determinações científicas da biogenética.

***Para concluir este texto, gostaria de apresentar, sinteticamente, algumas

transformações conceituais sofridas pelo conceito foucaultiano de biopolítica, tal como

apresentado no volume I da História da Sexualidade, ao se converter em tema diretor do

pensamento político-filosófico de Giorgio Agamben. Inspirando-se em Foucault, mas

também nas reflexões de Walter Benjamin, Hannah Arendt e de Carl Schmitt, Giorgio

Agamben pensa a biopolítica no entrecruzamento de quatro conceitos diretivos da política

ocidental: poder soberano, vida nua (homo sacer), estado de exceção e campo de

concentração, os quais perpassam toda a política ocidental e encontram, na modernidade,

sua máxima saturação. Sua reflexão político-filosófica estabelece uma nítida correlação

entre o caráter rotineiro dos assassinatos em massa ocorridos ao largo dos séculos 19 e 20 e

a normalização do “estado de exceção,” que também se pode observar durante esse mesmo

período de tempo. No âmago dessa correlação se encontra o princípio político da soberania,

identificado por Agamben como a instância que, ao traçar o limite entre vida protegida e

vida exposta à morte, politiza o fenômeno da vida ao incluí-la e excluí-la simultaneamente

da esfera jurídica, motivo pelo qual um regime biopolítico pode garantir tanto o incentivo

quanto o massacre da vida, não sendo casual a multiplicação das instâncias contemporâneas

de seu extermínio. Para Agamben, “o estado de exceção, no qual a vida nua era,

simultaneamente, excluída da ordem jurídica e aprisionada nela”, constitui a regra e o

próprio fundamento oculto da organização soberana dos corpos políticos no Ocidente.

Distintamente de Foucault, portanto, Agamben refere a biopolítica não à modernidade, mas

à tradição do pensamento político do ocidente, argumentando que a instituição do poder

soberano é correlata à definição do corpo político em termos biopolíticos:

A ‘politização’ da vida nua é a tarefa metafísica por excelência na qual se decide sobre a
humanidade do ser vivo homem, e ao assumir esta tarefa a modernidade não faz outra coisa
senão declarar sua própria fidelidade à estrutura essencial da tradição metafísica. O par
categorial fundamental da política ocidental não é o de amigo-inimigo, mas antes o da vida
nua–existência política, zoé-bios, exclusão-inclusão. 13

Estado de exceção e soberania política são figuras políticas indissociáveis, portanto.

Na exceção trata-se de uma situação jurídica paradoxal na qual a lei suprime a lei, na

medida em que se abolem, por meio da lei, certas garantias e direitos individuais ecoletivos, expondo os cidadãos ao risco iminente da morte violenta e legalmente justificada.

O soberano, por sua vez, na medida em que é aquele que pode decidir a respeito do estado

de exceção, como o pensou Schmitt, está simultaneamente dentro e fora do ordenamento

legal, pois, ao mesmo tempo em que o institui, também se exime dele, instaurando o estado

de exceção como um estado de indiferenciação entre fato e direito: “o soberano é o ponto

de indiferença entre violência e direito, o umbral em que a violência se torna direito e o

direito se torna violência”. Ao centrar sua reflexão na figura ambígua do soberano, que está

simultaneamente dentro e fora do ordenamento legal, visto possuir o poder de declarar o

estado de exceção no qual se instaura uma indiferenciação entre fato e direito, Agamben

chega à caracterização da figura simetricamente inversa à do soberano, a figura também

ambígua do homo sacer. Ela definia no antigo direito romano o homem que se incluía na

legislação na exata medida em que se encontrava totalmente desprotegido por ela, pois

homo sacer era aquele indivíduo que poderia ser morto por qualquer um sem que tal morte

constituísse um delito, bastando apenas que tal morte não fosse o resultado de um sacrifício

religioso ou de um processo jurídico: “A vida insacrificável e à qual, não obstante, se pode

matar, é a vida sagrada”.14 Para Agamben, portanto, não se pode pensar a figura do

soberano sem pensar a figura correlata do homo sacer, de modo que enquanto houver poder

soberano haverá vida nua e exposta ao abandono e à morte. Soberano é aquele com respeito

ao qual todos os homens são sagrados, isto é, podem ser mortos sem que se cometa

homicídio ou sacrifício, ao passo em que o homo sacer, por sua vez, é aquele em relação ao

qual qualquer homem pode se comportar como se fosse soberano, pois qualquer um pode

matá-lo.

A diferença especificamente moderna da estrutura biopolítica que perpassa os

corpos políticos do ocidente se encontra no fato de que, a partir da virada do século 18 para

o século 19, cada vez mais o estado de exceção vem se tornando a regra, tanto pela

multiplicação das ocasiões em que ele é declarado, quanto, mais recentemente, pela sua

própria duração. Em outras palavras, cada vez mais vem se tornando tênue e instável a

linha divisória que desde sempre demarcou a fronteira entre a vida qualificada (bios

politikos), isto é, a vida que merece ser vivida e que, portanto, deve ser protegida e

incentivada, e a mera vida (zoe), a vida nua desprovida de garantias e exposta à morte.Seguindo uma inspiração benjaminiana, Agamben observa que, se em nosso tempo, o

estado de exceção se tornou a regra, então não devemos nos espantar pelo fato de nossa

política comportar fenômenos como o totalitarismo, campos de extermínio, campos de

concentração, campos de refugiados, favelas como depósito de cadáveres-vivos à espera do

abate, prisões secretas etc. Segundo o autor, vivemos sob um regime biopolítico cada vez

mais intenso e saturado, no qual a dinâmica da proteção e destruição da vida por meio de

sua inclusão e exclusão do aparato jurídico regulado pelo poder soberano ameaça chegar ao

ponto máximo:

Se é verdade que a figura que nosso tempo nos propõe é a de uma vida insacrificável, mas
que se converteu em algo eliminável em uma medida inaudita, a vida nua do homo sacer
nos concerne de maneira particular. (...) Se hoje não há uma figura determinável de antemão
15
do homem sagrado é, talvez, porque todos somos virtualmente homines sacri.

Na modernidade, política e vida nua se entrelaçam e se tornam fenômenos

correlativos, não podendo ser compreendidos senão em sua correlação: a vida e seus

fenômenos vitais se politizam, ao passo em que a política versa exatamente sobre a vida e

seus fenômenos (sexualidade, necessidade etc.). Por isso, o debate político contemporâneo

se tornou o debate sobre “que forma de organização resultaria mais eficaz para assegurar o

cuidado, o controle e o desfrute da vida nua”, aspecto que, por sua vez, torna obsoletas as

“distinções políticas tradicionais (como as de direita e esquerda, liberalismo e totalitarismo,

público e privado)”. 16 Evidentemente, não se trata de identificar democracia e totalitarismo,

ou de negar os avanços, as diferenças e as conquistas da democracia em relação aos

governos totalitários, mas sim de demonstrar o fundamento da crescente convergência entre

estes regimes distintos. Se, como o afirma Agamben, o campo de concentração se tornou o

“paradigma oculto do espaço político da modernidade”, então é preciso apreender os seus

disfarces e variações, pois ele não se encontra ausente das democracias liberais. Pense-se,

por exemplo, nas prisões do terceiro mundo: não são elas um espaço ambíguo de inclusão

(no sistema jurídico formal) e de total exclusão do prisioneiro da legislação e da cidadania?

Não é esta situação ambígua que permite que o preso, além de ser considerado como umcidadão portador de direitos temporariamente limitados, seja também considerado como a

encarnação excessiva – há sempre um excedente de prisioneiros nestas prisões – da vida

que não merece viver, que pode ser descartada e assassinada sem que se cometa delito? Ou

então, pense-se nas periferias das grandes cidades, sobretudo naqueles casos em que o

confronto entre duas forças soberanas, a polícia e o crime organizado, gera um duplo

espaço de indistinção em que a autoridade (seja ela legal ou pára-legal) se encontra

puramente diante da vida nua que pode ser descartada sem mais a qualquer momento. Não

estamos aí diante de novos campos de extermínio? O preso, o favelado, o migrante e o

imigrante, em suma, o pobre e o miserável das modernas democracias liberais ou dos

velhos redutos autoritários constituem outras tantas figuras que confirmam o caráter

biopolítico e aporético da política contemporânea: eles constituem o elemento “que não

pode ser incluído no todo de que formam parte [isto é, o Povo como instância política

constituinte da soberania] e o que não pode pertencer ao conjunto em que já está sempre

incluído”.17 O campo de concentração é o espaço de politização da vida enquanto mera vida

nua entregue ao sacrifício, enquanto vida sagrada, matável, supérflua, descartável.

Para Agamben, portanto, de nada adianta apelar ao caráter sagrado da vida como o

núcleo de um direito humano fundamental, visto que o poder soberano se constitui

justamente ao traçar a partilha entre a vida que merece viver e aquela que pode ser

exterminada. Em outras palavras, a atual sacralidade da vida não constitui o pólo oposto ao

do poder soberano, mas é sua própria criação, de sorte que tal vida sagrada nunca poderá se

dissociar do processo pelo qual o poder soberano instaura o corte entre a vida protegida e a

vida abandonada, a vida entregue ao bando, relegada àquela esfera marginal que cai fora do

núcleo mesmo da comunidade política e que, estando banida, pode ser capturada e morta –

exceção provém de ex-capere, capturar fora. Agamben recorda que, atualmente, é quase

sempre em nome dos direitos humanos e da preservação da vida que se decretam e se

impõem intervenções bélicas, ditas humanitárias, reforçando-se assim o núcleo paradoxal

da biopolítica, segundo o qual a manutenção da qualidade de vida de uns implica e exige a

destruição da vida de outros. Ademais, as organizações humanitárias se dirigem sempre e

apenas à vida nua, e nunca problematizam, politicamente, a proliferação desta mesma vida

nua da qual se alimentam. Concomitantemente à expansão do caráter biopolítico dasintervenções bélicas promovidas pelas democracias liberais, outro fenômeno notável da

atualidade é a rápida e suave colonização neoliberal dos antigos ideais e valores da velha

esquerda, os quais, devidamente despolitizados e domesticados, podem orientar a gestão

burocrática e pacífica de populações: chegamos à noite contemporânea em que todos os

gatos são pardos, em que ninguém mais é de direita ou de esquerda, já que toda política

hegemônica agora se autodenomina de centro, como observou Chantal Mouffe.

Nas poucas oportunidades em que se dedica a transcender o diagnóstico biopolítico

do presente, Agamben reflete sobre a noção de “forma-de-vida”, isto é, de uma vida que

não pode dissociar-se de sua forma, que não pode jamais ser apreendida como vida nua,

pois, em seu viver, em seus atos e comportamentos, nunca se trata simplesmente de meros

“fatos”, mas sempre de “possibilidades de vida, sempre e antes de tudo de potências”:

Nenhum comportamento e nenhuma forma de vida humana jamais são prescritos por uma
vocação biológica específica, nem alocados por uma necessidade qualquer, mas, ainda que
habituais, repetidos e socialmente obrigatórios, sempre conservam o caráter de uma
possibilidade, ou, dito de outra forma, eles sempre põem em jogo o próprio viver. É por isso
que, enquanto um ser de potência, que pode fazer e não fazer, fracassar ou ser bem
sucedido, perder-se ou reencontrar-se, o homem é o único ser na vida do qual sempre se
trata da felicidade, o único ser cuja vida está designada à felicidade, irremediável e
18
dolorosamente. Mas isto constitui, de saída, a forma-de-vida como vida política.

Esta vida política entendida como forma-de-vida orientada para a felicidade só é

concebível para além da cisão biopolítica instaurada pelo poder soberano, capaz de

instaurar o estado de exceção e, assim, traçar o limite instável entre vida qualificada e vida

nua. Isto quer dizer que a consideração da vida política como forma-de-vida destinada à

felicidade, visto que entregue à sua potencialidade, à sua capacidade de atualizar-se,

depende em primeira instância da consideração de uma política pára-estatal, que escape de

uma vez por todas ao jogo e ao jugo biopolítico da soberania. Agamben encontra a

instância de uma tal política não-estatal em que vida e forma-de-vida não se dissociam, isto

é, em que a vida é assumida como vida em potência, no que chamou de experiência de

pensamento. Pensamento, não certamente enquanto exercício individual, mas como “um

experimentum que tem por objeto o caráter potencial da vida e da inteligência humana”.19Trata-se do pensar como experiência de uma “pura potência de pensamento” em cada

pensamento. O que Agamben parece querer dizer – aparentemente, sob inspiração de

Heidegger – é que é preciso experimentar o pensamento como um engajamento absoluto

daquele que pensa em seus pensamentos, de tal maneira que, a cada momento, a vida esteja

totalmente engajada no viver de uma vida que se afirme como possibilidade e não como

mero fato ou coisa dada, pois só pode haver uma verdadeira comunidade política em se

tratando de seres que não são em ato, que não são já de saída isto ou aquilo, que não

possuem uma identidade que lhes tenha sido pré-designada: “A experiência de pensamento

de que se trata aqui é sempre experiência de uma potência comum. Comunidade e potência

se identificam sem resíduo, pois a inerência de um princípio comunitário em cada potência

é função do caráter necessariamente potencial de toda comunidade”.20 Sem dúvida, tais

considerações podem parecer vagas e abstratas, talvez até mesmo frágeis. De todo modo,

antes de abandoná-las apressadamente caberia interrogar se elas não contêm a tradução

atualizada da intuição foucaultiana segundo a qual, em face do biopoder, só nos resta lutar

pela realização da vida em suas “virtualidades”, pela vida como “plenitude do possível”. 21

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